Em 1972-73 o distribuidor de bebidas Kaskol, Reinaldo Silva, de saudosa memória, montou dois times de futebol de salão. Aliás, dois timaços, o A (Kaskol) e o B (Katira). Ele recrutou os melhores jogadores de Corumbá e Ladário para formar esses dois times. Entre outros: Luiz Mário e Edinho Rachid (imarcáveis), Chanica (Jonas de Lima), Pedro Paulo, Onílson, Jorge Brito, Dedorra e quatro excelentes goleiros, entre os quais o Malah (Augusto Alexandrino), o Pedrinho Peteca e o Ripiau.
Enfrentar essas equipes era tarefa ingrata. Quase imbatíveis. O meu primo Hélio Conceição – que merece uma baita homenagem por sua dedicação singular ao esporte há 50 anos – formou o Misto e entrou num torneio, pegando de cara o time da Kaskol ou Katira, não me lembro qual, só sei que era uma equipe invicta até então.
Jogamos de igual pra igual, partida em 2 a 2 e os dois goleiros pegando quase tudo. O nosso era, salvo engano, o Charles (formou-se em Medicina e não sei onde anda). O deles era o Malah. Quase no final do jogo nosso pivô Ricardo deu um passe açucarado e eu, cara a cara, a queima-roupa, antevendo o gol, gritei, entre irônico e autosuficiente: “Pega essa, Malah!”.
A bola foi veloz, no alto, ia morrer no ângulo. Eu ainda saboreava o eco do tripúdio antecipado: “Pega essa, Malah!!!” E o Malah pegou. Ele foi tão rápido que, talvez antes mesmo de abrir as asas, fez um voo circunflexado na direção da bola. Na ponta dos dedos, com a envergadura do simples e do talentoso, com a baita capacidade de não render-se ao fato consumado, o Malah desviou a esfera que um segundo antes eu pensei ver chacoalhando as redes.
Naquele dia e naquele jogo eu passei a assegurar-me que o Malah tinha asas.
Que ela tinha dons singulares e talentos sobrenaturais eu já desconfiava. Bem antes daquela defesa miraculosa, eu certa vez fiquei de queixo caído vendo, ou melhor, admirando o Malah em malabarismos inacreditáveis com duas baquetas nas mãos e um enorme e pesado fuzileiro atado à barriga, desfilando todo garboso e na cadência da fanfarra do Colégio Maria Leite. Foi vendo-o tocar, fascinado, que eu me atrevi a brigar por um lugar na fanfarra do Santa Tereza. Para tocar fuzileiro. Queria saber o segredo da habilidade magicamente simplista daquele negro-mulato-bugre-pantaneiro que dava cor, arte, sincronismo e rebeldia a dois pedaços de madeira rústica presos às duas mãos por barbantes.
Quando vi o Malah tocar fuzileiro pela primeira vez, sem saber eu estava tendo minha primeira aula. Sim, porque dias depois consegui entrar fanfarra do Salesiano, arquirrival do Maria Leite. Uma semana antes do desfile de 21 de setembro, aniversário de Corumbá, quebrei o braço jogando bola. Saí do hospital 48 horas depois, engessado. Mas no dia do desfile, arranquei o gesso e fui perfilar com meus amigos de fanfarra, orgulhoso e choroso de emoção, obcecado por dois objetivos: vestir aquele inolvidável blusão dourado e preto do Salesiano, com o desenho do “S” do Paraguai e das palmeiras, e encarar de igual para igual meu mestre Malah nos irregulares paralelepípedos da Rua Frei Mariano. Diziam que eu era craque nos malabarismos. Não, não chegava a tanto. Perto do Malah eu era só um aprendiz.
No sábado passado, dia 25 de maio de 2013, um amigo deu-me a notícia. Secamente.
Poderia ter-me fantasiado o desenlace e comunicar-me que o Malah estava voando para o infinito. Mas qual – esse meu amigo seguramente não entende de voo e jamais poderia supor que um ser humano fosse capaz de voar. O voo de hoje perdeu até o circunflexo. O de ontem era acentuado porque, no grafismo das duas asas abertas, reconhecia a necessidade de sublinhar o invisível, o mágico e o genial que impulsionavam a arremetida de quem, como Augusto Alexandrino dos Santos, quando queria flanar, flanava; quando queria pousar, pousava; e quando queria decolar, decolava.
Malah voou. Como naquela defesa que tirou a bola do ângulo. Como naquelas tranças de baquetas e cordões que nunca se enrolavam no fuzileiro. Agora lá vai, para o espaço da lembrança, nossa saudades projetada ao infinito. Segura essa, Malah!
Por: Edson Moraes