Gênese do Arsenal de Marinha de Ladário. Inconveniências da Instalação do Arsenal de Mato Grosso em Cuiabá (Parte II)
Após escaramuças entre portugueses e espanhóis, como desdobramento da Guerra dos Sete Anos na América Portuguesa, tanto pelo controle das vias navegáveis do Rio Guaporé quanto pela invasão do Rio Grande de São Pedro (atual Rio Grande do Sul), o conflito terminou em 1763 com a assinatura do Tratado de Paris entre a Grã-Bretanha, França, Portugal e Espanha e que pôs fim à Guerra dos Sete Anos.
Rolim de Moura ao embaraçar a repetição de tais atos, criação de missões espanholas em ambas as margens do Rio Guaporé, e um rasgo de originalidade, guerra de movimento usando canoas artilhadas, deu início ao processo de militarização da Capitania de Mato Grosso. Este processo foi consolidado, pelo menos em parte, pelo quarto Capitão General da Capitania de Mato Grosso, Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres.
Luiz de Albuquerque seguindo ordens do Rei de Portugal D. José I ergueu a margem direita do Rio Guaporé em substituição ao Fortim da Conceição o Forte Príncipe da Beira, cuja pedra fundamental foi lançada em 20 de junho de 1776. O projeto do forte seguiu o estilo do Engenheiro Militar Francês Sébastien Le Prestre, conhecido como estilo Vauban.
Outro baluarte de Luiz de Albuquerque foi o Forte de Coimbra, fundado em 13 de setembro de 1775 no Médio Paraguai a margem direita, cuja fundação objetivava a defesa da fronteira meridional da Capitania de Mato Grosso, devendo guardar as possessões portuguesas e assegurar as bocas e a navegação dos Rios Miranda e Taquari (BRAZIL, 2011). Entre os desafios da manutenção da posse dos atuais Estados de Mato Groso e Mato Grosso do Sul estava a livre navegação do Rio Paraguai e seus tributários e organizar uma resposta a uma eventual ofensiva espanhola. Para Raul Silveira de Mello, a intenção de Luiz de Albuquerque não era invadir os domínios castelhanos. O que ele desejava era simplesmente guardar a navegação do médio Paraguai [sic], como fazia no curso do Guaporé, impedindo que os vizinhos ultrapassassem o que era seu (MELLO, 1959, p. 49).
Percebe-se neste processo de militarização que a Capitanias de Mato Grosso carecia de uma força naval. O transporte de homens, materiais, equipamentos e víveres entre os fortes e povoados, eram feitas sobre canoas monóxilas usadas desde as monções, como herança dos paiaguá, já descrita no texto anterior.
O alvorecer do século XIX foi marcado por intensa agitação no Brasil Colônia. Na Europa, Napoleão Bonaparte avançava com seus exércitos. Diante da invasão francesa ao seu território por não ter apoiado o Bloqueio Continental, Portugal transmigrou a Família Real e seus principais quadros humanos para o Brasil em 1808. Dentre as medidas adotadas por D. João VI quando de sua estada no Brasil, foi autorizar a invasão do Uruguai em 1811 e sua anexação em 1821. José Artigas liderava no Uruguai um movimento republicano, portanto antimonarquista, que pelo menos em tese, poderia ameaçar a unidade territorial do Brasil Tal movimento poderia ultrapassar as fronteiras do Uruguai e atingir do Sul do Brasil, assim D. João VI, preventivamente e ambições territoriais invade a Cisplatina.
Após a Independência do Brasil a questão envolvendo o Uruguai permaneceu e se acirrou, levando brasileiros e argentinos a disputarem o controle da Cisplatina na Guerra contra as Províncias Unidas do Prata, Esta Guerra entre Brasil e Argentina pelo controle do Uruguai, sem vencidos e vencedores, terminou com o Tratado de Montevidéu onde os dois países apoiaram o independência da Cisplatina e a criação da República Oriental do Uruguai.
Qual a relação entre a Guerra da Cisplatina e a fundação do Arsenal de Marinha de Mato Grosso? Destacam-se duas evidências: a projeção de Augusto Leverger um dos grandes nomes da Marinha Brasileira e de Mato Grosso e a necessidade de organizar uma flotilha de Barcas Canhoneiras em Mato Grosso.
A Guerra da Cisplatina vai revelar o talento de um jovem marinheiro, Augusto Leverger. Leverger com vinte anos de idade, recém chegado de sua terra natal, França, se empregou no Uruguai na Escuna Angélica chegando a segundo comandante. Em seguida assumiu o vice comando da Galera General Lécor. Nas Guerras da Independência em 1822 participou da Batalha de Montevidéu. Retornando ao Brasil, onde já estivera anteriormente, pediu incorporação a Marinha Imperial Brasileira. Em 15 de outubro de 1829 chegou à ordem do quartel general da Marinha para viajar até Mato Grosso, com a missão de ali organizar a defesa da fronteira no rio Paraguai. Ao chegar a Mato Grosso em 1830 participou ativamente da construção das barcas canhoneiras e ligou-se definitivamente a historiografia militar naval em Mato Grosso.
Em 1825 o Imperador D. Pedro I resolve ordenar através de Portaria de 14 de abril de 1825 entre outras providências relativas à defesa da Província de Mato Grosso, que o Governador das Armas, procedesse a construção de seis barcas canhoneiras, quer deverão ser empregadas em proteger o Forte de Nova Coimbra, e mais fronteira pelo Rio Paraguai.
No cumprimento desta determinação imperial, o Ministro e Secretário dos Negócios da Guerra, João Vieira de Carvalho, através da Portaria de 14 de abril de 1825, dirigida ao Governador das Armas da Província de Mato Grosso, solicitou informações sobre a situação militar da província e sua capacidade de defesa. Na ausência do Governador das Armas, nomeado e não empossado por não ter se apresentado a nova função, o Major de Engenheiros José Saturnino, então Governador de Mato Grosso, pediu aos comandantes militares informações sobre o sistema de defesa da província, enviando aos mesmos uma quesitação. Dois oito quesitos propostos pelo governador interessam-nos mais de perto o primeiro: local mais apropriado para instalação do Primeiro Comando Militar da Província e o oitavo, qual será o meio mais fácil e econômico para a construção das Barcas Canhoneiras, mandadas construírem nesta província pelo Imperador.
Não houve concordância entre os comandantes militares sobre o melhor local para instalação do arsenal e construção das barcas canhoneiras. Entretanto o Comandante do Quartel Militar de Cuiabá Antonio José de Cerqueira Caldas, apontou as facilidades de Vila Maria (atual Cáceres) e as inconveniências do Porto de Cuiabá. Em Santa Maria havia abundância de madeiras para construção naval, operários capacitados por já haverem construídos barcas de caverna e principalmente a navegação plena em qualquer época do ano.
Vila Maria, foi apontada como o local ideal para a construção das barcas, não só pela existência de madeiras para construção naval, como por ter abrigado a construção de duas barcas de caverna, que por falta de cuidados apodreceram no porto. A existência de madeiras para construção naval era fundamental na construção de vasos de guerra. Na opinião do Ministro da Marinha, Joaquim José Rodrigues Torres, a escolha das madeiras para a construção dos navios de guerra, influenciava diretamente na sua qualidade das embarcações melhor conhecimento sobre os lugares mais próprios para tirar madeira de construção, e o maior número de experiências sobre o uso mais vantajoso de cada uma das espécies que temos nos pode assegurar mui sensível melhoramento na construção de nossos vasos de guerra.
Mesmo não oferecendo as melhores condições, a escolha do local para construção das barcas e instalação do Arsenal de Marinha, recaiu sobre o Porto de Cuiabá. Esse local abrigou o Arsenal de Marinha de Mato Grosso e a Companhia de Imperiais Marinheiros até 1873.
A escolha do Porto de Cuiabá para sediar o Arsenal das Barcas Canhoneiras, conforme se pode inferir da documentação consultada no Arquivo Público de Mato Grosso (APMT), foi uma decisão que não considerou os componentes necessários às construções navais, entre eles, o fornecimento de madeiras para o fabrico do cavername, mastros e vergas e a navegabilidade do Rio Cuiabá. No período das secas as barcas dificilmente poderiam sair do porto e consequentemente não cumpririam as funções para as quais seriam construídas – defesa do Rio Paraguai.
A escassez de material e pessoal qualificado atrasou o cronograma de construção. Das seis barcaças autorizadas a construir-se na Província de Mato Grosso, pela Secretaria da Guerra, através de Portaria de sete de junho de1825, aprimeira teve sua quilha batida em 30 de outubro de 1827.
No mesmo ofício no qual José Saturnino noticiava o lançamento da primeira barca, informava também que na próxima mala do correio enviaria a Conta das Despesas da Construção das Barcas. Tal informação foi prestada através do ofício N.4 de cinco de dezembro de 1827 ao Ministro da Marinha. No detalhamento da Conta das Despesas, José Saturnino responsável pela construção das barcas, informa que do total de 2:835$425 (Dois Contos, Oitocentos e Trinta e Cinco Mil e Quatrocentos e Vinte e Cinco Réis) informados como despesas, estavam incluídos gastos com obras e equipamentos construídos para diversas repartições governamentais da Província, e não apenas com as obras do Arsenal e das barcas, assim como dos salários dos operários e militares. Analisando as despesas, se percebem que a preocupação de José Saturnino, eram justificar os gastos com obras, móveis e utensílios, alheios as construções navais.
A retomada da última etapa das construções navais só vai acontecer por volta de 1850, em virtude das disputas com a República do Paraguai pela livre navegação no Rio Paraguai, considerando embaraços causados pelos paraguaios a intenção do Império Brasileiro de manter regular intercambio entre o Sudeste e a Capital de Mato Grosso, Cuiabá.
Neste sentido, através do Aviso de 25 de abril de 1850 do Ministério da Marinha, o Ministro Manoel Vieira Tosta, informou ao Presidente da Província o envio de novo carregamento de materiais, entre os quais; tintas, pregos de cobre, folhas de cobre, tachas de cobre, verrumas, serrotes, serra manual, travadeiras, ferros, formão, goiva, trincas, grosas e martelos para conclusão das barcas. Após reveses políticos, falta de material, pessoal qualificado, a última barca só foi concluída em 1852.
A Conta das Despesas da primeira barca construída, lançada a água em 30 de outubro de 1827 no valor de 2:835$425 (Dois Contos, Oitocentos e Trinta e Cinco Mil e Quatrocentos e Vinte e Cinco Réis), até o orçamento das forças navais em Mato Grosso do ano financeiro de 1851/1852, no valor de 32:714$000 (Trinta e Dois Contos, Setecentos e Quatorze Mil Réis), observa-se um interregno de 25 anos e a disparidade entre as despesas da primeira e da última barca.
Nesse período, os problemas envolvendo a construção das seis Barcas Canhoneiras: 22 de Abril; 22 de Julho; 18 de Julho; 3 de Fevereiro; Independência e Izabel, em parte, apontaram como o Governo Imperial tratava as questões do Sistema de Defesa da Província de Mato Grosso, ao mesmo tempo em que ajudam a entender, também parcialmente, a invasão de Mato Grosso pelas tropas paraguaias.
As deficiências do Arsenal de Marinha de Mato Grosso e a inconveniência de sua localização, já discutidas, levaram o Ministro da Marinha, João Mauricio Wanderley a discutir a possibilidade de sua transferência O Arsenal, ou pequeno depósito de munições navais, destinado unicamente aos reparos e fornecimento da Flotilha da Província de Mato Grosso, devendo receber com a abertura da navegação fluvial o devido desenvolvimento, não poderá permanecer no local, em que presentemente existe, e terá que ser removido para outro que reúna melhores condições. Pouco ou nada se perderá com o abandono ao antigo Arsenal, porque ali de tudo ainda se precisa.
Do presente texto de forma reduzida, podem-se apreender as dificuldades e inconveniências enfrentadas pelo Arsenal de Marinha de Mato Grosso em Cuiabá e a necessidade imperiosa de sua transferência.
Na terceira parte desta série de artigos, serão discutidos os debates e as disputas políticas sobre a transferência do arsenal de marinha e a escolha do local mais adequado para sua instalação.
Por: Saulo Alvaro de Mello
Mestre em História UFGD