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Regata de Canoinhas – herança do ethos guató/paiguá

 

O conquistador Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, ao registrar sua travessia pela região da baixada do rio Paraguai em 1543, achou admirável uma pequena embarcação sem quilha conduzida com destreza por seus remadores. Segundo ele: Estas canoas, porém, são muito velozes e eles são hábeis remadores, andando em enorme velocidade, tanto rio abaixo como rio acima. Nem mesmo um bergantim com dezenas de remos consegue acompanhá-los.

O cronista português Cabeza de Vaca estava se referindo ao nativo paiaguá, e as canoinhas, utilizadas até os dias de hoje pelo ribeirinho, nos rios de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Como forma de rememorar a destreza dos paiguá e guató na condução das canoinhas, o Sexto Distrito Naval de Ladário, realiza anualmente a Regata de Canoinhas, atualmente em sua 21ª edição. Antes da chegada do colonizador à planície pantaneira, esse tipo de embarcação era o símbolo da cultura paiaguá/guató, numa perfeita simbiose homem-água, e sua relação anfíbia com os pantanais. O Diretor Geral dos Índios Joaquim Alves Ferreira, referindo-se aos guató e suas canoinhas, afirmou serem elas fabricadas com bastante perfeição, pequenas e velozes, construídas em número proporcional aos membros da família.

Ao lembrar esse legado indígena, o Sexto Distrito Naval mantém viva a memória do nativo canoeiro, através das canoinhas de um pau só, numa regata fluvial.

A destreza do remador em conduzir sua canoa, e seu uso como meio de transporte, esta presente na literatura monçoeira, ao narrar às expedições fluviais que demandavam da Freguesia de Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araritaguaba, em São Paulo, até o Arraial do Bom Senhor Jesus, em Cuiabá.

A velocidade das canoas paiaguá, superior às embarcações dos luso-brasileiros, foi relatada por João Antonio Cabral Camello, por ocasião do ataque a monção do Ouvidor das Minas de Cuiabá Antonio Álvares Lanhas Peixoto em 1727: Velozes, navegavam em uma hora o que os brancos faziam num dia (sic) pelo fato de terem melhores canoas e remeiros.

A velocidade das canoas paiaguá, em que pese à destreza dos remadores, pode também ser atribuída à madeira usada na sua fabricação, tais como: timbó, cambará e ximbuva. Os nativos recorriam a esta madeira leve e flutuante e usavam a técnica básica de remarem em pé sobre a popa. Nesse caso, corpo e remo eram usados para dar maior propulsão às canoas monóxilas, imprimindo-lhe maior velocidade que as embarcações a vela, a exemplo das sumacas e os bergantins, comuns nos rios mato-grossenses, após a chegada dos colonizadores.
A propulsão das canoas com ajuda de remos era utilizada pelos remadores monçoeiros desde a descoberta das minas de Cuiabá, técnica essa herdada dos nativos. Ao longo do tempo, tanto essa técnica de remagem como as pequenas embarcações foram gradativamente substituídas por barcaças e batelões. Entretanto, por muito tempo canoas monóxilas foram usadas como meio de transporte nos rios de Mato Grosso. Tampouco os remeiros deixaram de utilizar as técnicas dos paiaguá, mesmo com a desarticulação da navegação monçoeira do sul, no século 19.

Sobre o este tipo de embarcação, Francis Castelnau, ao deixar Cuiabá, em 27 de janeiro de 1845, rumo ao sul da Província, deixou registrada sua utilização durante viagem à regiões da América do Sul: Houve por bem o presidente [da Província, Ricardo Jose Gomes Jardim] por a nossa disposição duas canoas grandes e bonitas, ambas feitas de um só tronco. O viajante também anotou que a célebre expedição: havia contratado para remadores uns doze índios Guanás.

Sobre a agilidade e velocidade das canoas dos paiaguá, consta nos Relatos Monçoeiros, Notícia 8ª Prática, que eram tão leves que os nativos ao se verem perseguidos lançavam-se ao rio e por baixo delas as reviravam. Revirar a canoa significava estratégia de luta, que envolvia a arte de planejar e executar movimentos. Nessas operações os canoeiros se protegiam dos tiros desferidos pelos luso-brasileiros e castelhanos. A canoa transformava-se num escudo eficaz, pois os nativos ficavam com o corpo mergulhado na água apenas com a cabeça dentro da embarcação como se fosse uma carapaça.

Nem todos os gentios embarcadiços remavam em pé ou usavam canoas monóxilas. Os porrudos usavam canoas de casca de jatobá e remavam sentados. Estas embarcações embora de fabricação mais simples do que as de um lenho só tinham uma inconveniência – quando afundavam não retornavam mais à margem. As manobras de guerra dos paiaguá davam poucas chances de contra-ataques. Segundo o Almirante Antônio Alves Câmara, os nativos costumavam afundar as canoas de casca, para ocultá-las dos inimigos. Essa estratégia era aplicada principalmente às canoas de casca de jatobá, que podiam ficar submersas sem apodrecerem.

Desde as canoas de Casca de Jatobá, paxiúba ou jutaí, usadas nos rios mato-grossenses ou amazônicos, às canoas monóxilas, utilizadas nas monções como transporte de passageiros, cargas, e, como meio de defesa, transporte de tropas e peças de artilharia, houve inegavelmente influência indígena nessas construções.

A fabricação das canoas de casca consistia em retirar a casca inteira, seja da árvore em pé usando andaimes, ou derrubadas. As extremidades eram amarradas com cipó e aparadas. Atravessavam pedaços de madeira para abrir o bojo e impedir que fechassem quando secas. A seguir, colocavam-na em uma bancada e ateavam fogo embaixo de forma a curá-las, para evitar que apodrecessem pela ação das chuvas.

As canoas de casca eram utilizadas pelos nativos do litoral do Rio de Janeiro, para atacar os navios portugueses ou franceses, de acordo com alianças realizadas. Representaram importante papel na defesa da cidade de São Sebastião no século 16.

Já as canoas dos Tamoios se pareciam com as enormes monóxilas usadas nas monções e as técnicas de guerra se assemelhavam a dos paiaguá, conforme destacou o Almirante Antônio Álves Câmara: Para esse efeito [guerra contra os portugueses] fabricavam canoas de guerra de grandeza notável, destroncando as matas, naquela paragem imensa, viçosa, e que sobem as nuvens, e cavando aqueles corpos grossos. Curados do sol, e dos anos, faziam embarcações fortíssimas, capazes as maiores de cento e cinqüenta guerreiros, todos remeiros, e toldos soldados, porque com o mesmo remo em punho de uma parte, e outra da canoa, sustentam o arco e despedem a seta com destreza grande.

Os nativos da planície pantaneira, também utilizavam canoas de casca, canoas de guerra e canoinhas para caça e pesca. Menores e mais leves, eram utilizadas pelos luso-brasileiros, principalmente nas missões de reconhecimento.
As canoinhas, usadas pelos paiaguá, também serviram aos propósitos do colonizador, durante os conflitos com os espanhóis, pela posse das missões instaladas no rio Guaporé. No período em que esteve à frente dos preparativos de guerra contra os espanhóis em 1759-1764, Antonio Rolim de Moura, então Capitão General da Capitania de Mato Grosso, recorreu às canoinhas, como meio de transporte, correio, caça e reconhecimento. Por serem menores e mais leves que as canoas de guerra, as referidas canoinhas desenvolviam maior agilidade, sendo preferidas para as missões de reconhecimento.

As pequenas canoas, signos da cultura paiaguá/guató, por vezes transformava-se em morada, numa perfeita harmonia homem-natureza, aspecto interpretado pela historiadora Maria Fátima Costa como reinvenção de formas de sobrevivências na região pantaneira. Ainda para Costa, Dentre os povos pantaneiros, talvez tenham sido os Payaguá aquele que melhor simbolizou a anfíbia relação homem-água tão própria deste lugar. Sua vida se passava nos rios e cursos fluviais; era da água também que vertiam suas crenças e sonhos. A mesma relação foi ressaltada por Carlos Francisco Moura: Os Paiaguás nos deram um dos mais admiráveis exemplos de adaptação ao meio. O rio Paraguai era seu reino, e nele se sentiam como peixes dentro d’água.

Essa reinvenção realizada pelos paiaguá na luta pela sobrevivência, traduzida na utilização das canoas, foi legada aos exploradores que assimilaram suas técnicas e ocuparam seus espaços. Quanto a sua área de concentração, Magna Lima Magalhães dá conta de que o território paiaguá abrangia extremo norte de Mato Grosso, a partir do Porto da Candelária, e alcançava o extremo sul, na desembocadura do rio Bermejo, abaixo de Assunção. Já os guató, ambientados nos rios mato-grossenses, sobretudo, na Barra do Rio Cuiabá, São Lourenço e Baía Guaíba.

A utilização destas embarcações – canoas grandes de guerra e canoinhas – foi fundamental na ocupação e colonização da planície pantaneira. Os primeiros colonizadores que chegaram em 1778 à região do Barrote em Ladário utilizavam essas embarcações.

Após estas considerações sobre o legado nativo, cabe destacar, que a regata de canoinhas, mantém viva a cultura pantaneira, além de marcar a importante presença da Marinha Brasileira em Ladário e Corumbá.

 

Por: Saulo Álvaro de Mello (Professor/Mestre em História/UFGD)
sauloamello@yahoo.com.br