No dia 20 de janeiro o ex-presidente Lula, em entrevista a blogueiros, descreveu-se como “liberal” em oposição a Dilma, mais de esquerda. Antes disso, temos visto velhos nomes e partidos de nossa política adotando posições liberais, sem falar no surgimento do primeiro partido liberal desde a origem: o Partido Novo. Vê-se nas ruas camisetas que dizem “menos Marx, mais Mises”. Vivenciamos uma transformação cultural radical. Doze anos atrás, quando entrei na graduação de economia, só um ou outro professor tinha ouvido falar de Mises. Liberal (ou neoliberal) era palavrão.
Um reflexo dessa transformação é o interesse em pensadores liberais brasileiros do passado, dentre os quais José Guilherme Merquior ocupa posição de destaque por sua vertiginosa produção intelectual e participação política em diversos governos. Antes de sua morte prematura, aos 49 anos, em 1991, teve papel importante na formulação econômica do governo Collor, de cujo fim foi poupado. Poucos se lembram hoje em dia, mas Collor foi eleito numa plataforma liberal, e de fato abriu nossa economia ao mercado externo, antes de meter os pés pelas mãos na política econômica.
É curioso que Merquior seja um nome pouco reconhecido mesmo no movimento liberal e libertário que ganha corpo no Brasil. Não temos fugido à regra: como tantos outros movimentos, o movimento liberal nasce sem consciência de seu passado e por isso tem dificuldade em criar uma tradição de pensamento nativa. Mergulhar na obra de Merquior, da qual O liberalismo antigo e moderno — reeditado em 2014 pela É Realizações — é um ponto alto, pode nos ajudar a romper a amnésia intelectual.
Ideias vivas
Como a própria introdução do livro anuncia, conceitos e movimentos históricos não se prestam a definições estanques. Não há um liberalismo ideal do qual os liberalismos históricos sejam instanciações mais ou menos perfeitas. Há alguns valores e ideias que costumam caminhar juntos e que sofrem mutações. Em última análise, há indivíduos pensando e se comunicando, e nenhuma ideia pura fora de mentes vivas.
No início, a leitura não é exatamente fluida. Merquior busca traçar a diferença entre liberdade (“liberty”) e autonomia (“freedom”), subdividindo cada uma em diversas subcategorias, que por vezes se confundem. Ele mesmo não é consistente no uso desses termos — como uma nota explicativa adverte — e o que em um momento foi colocado no grupo da “autonomia” pode mais à frente aparecer como “liberdade”. O livro começa de verdade quando abandona a consideração abstrata e entra na História, traçando o percurso do liberalismo.
Elementos protoliberais são identificados na Idade Média — com a defesa de direitos de classe —, na Renascença, que nos legou o ideal do humanismo cívico e na Reforma, que preconizou a inviolabilidade da consciência individual. Mas o liberalismo propriamente dito nasce com os whigs britânicos, defensores de limites do poder real e de mais poderes políticos para os proprietários de terra. Valorizavam a liberdade de expressão e de crença, eram tolerantes do ponto de vista moral e individualistas em sua visão de sociedade, mas buscavam excluir a participação das classes mais baixas nos assuntos nacionais. A grande expressão desse pensamento é Locke.
Felizmente, Merquior não se fecha no mundo anglo-saxão que em geral domina o debate liberal. Buscou tradições liberais em três países de contribuições bem diferentes ao tema: Inglaterra, França e Alemanha. Da Inglaterra, herdamos a defesa do individualismo e das liberdades básicas. Da França, o valor da liberdade como capacidade e do papel ativo na constituição da sociedade. E da Alemanha o valor do autocultivo e do aperfeiçoamento pessoal. Além disso, cobre autores de outras nações como Espanha, Itália e até Argentina.
Outro Liberalismo
Se procurarmos as principais referências da atual ascensão liberal em curso no Brasil, veremos um já conhecido rol de autores consagrados: Adam Smith, Ricardo, Say, Bastiat, Menger, Mises, Hayek, etc. Curiosamente, com exceção de Smith e Hayek, todos recebem menções apenas pontuais no livro, o que nos mostra como
o liberalismo de Merquior não era antes de tudo econômico, mas principalmente político e ético. O liberalismo econômico
estrito ganha o nome “liberismo”, que é a pecha usada, por exemplo, para descrever Mises e Hayek.
No lugar de economistas, sua atenção se volta a filósofos políticos, filósofos do direito e sociólogos. Somos apresentados a autores hoje pouco lembrados, como o italiano Benedetto Croce, o francês Ernest Renan e até dois pensadores latino-americanos, os argentinos Alberdi e Sarmiento, liberais conservadores que teorizaram soluções para a pobreza em seu país. Dentre os nomes do século 20, destaca-se a evidente admiração de Merquior pelo sociólogo Raymond Aron e por Norberto Bobbio. E incontáveis outros.
O próprio Merquior é um tanto culpado do vício brasileiro que citei acima, posto que não tem uma palavra a dizer sobre o liberalismo no Brasil, embora nomes como o de José Bonifácio ou Joaquim Nabuco não tenham deixado nada a dever, em matéria de visão social (se não de reflexão filosófica), a nenhum de seus contemporâneos. Apesar dessa lacuna, a quantidade de autores e a variedade de posições que ele articula são impressionantes.
O movimento das ideias
O livro é um turbilhão frenético de pensadores, cada um contribuindo algo com o que veio antes, abrindo um novo caminho, contrapondo-se ao resto da tradição, mas mantendo algum princípio em comum. Para gerações passadas de leitores, sem internet e em um Brasil fechado ao mundo, a importância de um trabalho como este começava pelo serviço básico de introduzir autores. Hoje em dia, pode valer por seus méritos intrínsecos.
Seria vão tentar uma sinopse de uma obra que é a articulação do pensamento de dezenas de autores das mais variadas origens em pouco mais de 250 páginas (mais um rico aparato crítico da nova edição). Pode-se dizer que, enquanto análise, não se sobressai; é na síntese que revela seu valor, na perspectiva do todo, no olhar distanciado de quem observa o fluxo de um rio, com suas ramificações e reencontros de águas.
É de meados do século 19 para frente, com a distinção entre o liberalismo conservador e o liberalismo social (ou de esquerda), que a narrativa floresce, seguindo em alta voltagem até meados do século20. Sentimos realmente acompanhar um pensamento vivo, que se transforma com o tempo para responder a novas inquietações. De um lado, o receio perante o poder das massas e da democracia como um sistema que pode solapar direitos individuais em nome da igualdade. Do outro, a preocupação em assegurar qualidade de vida e liberdade a todos, contrapondo-se, de maneira geral, ao laissez-faire econômico do liberalismo anterior; e nem por isso, segundo Merquior, menos liberal.
Liberdade aberta ao futuro
A divisão entre o liberalismo à direita e à esquerda reflete uma transição do próprio Merquior. Inicialmente mais afeito ao elitismo e à desconfiança para com a democracia, passou a se preocupar cada vez mais com a divisão do poder e com as garantias de acesso a condições mínimas de vida e participação para todos. Não é à toa que o próprio programa de Collor, por ele formulado, fosse batizado de “liberalismo social”.
No final das contas, o liberalismo aparece como uma força de divisão do poder, garantindo uma esfera crescente de autonomia, poder de decisão e participação política a cada vez mais pessoas. Inicialmente, o liberalismo combatia o absolutismo monárquico. No século 19, adotou a postura expansiva, universalizando direitos individuais e se preocupando com a construção de uma sociedade mais racional e mais próspera. No século 20, adotou novamente a defensiva, na constante crítica — seja à direita ou à esquerda — do totalitarismo e do excesso de direitos positivos.
Não há nenhuma conclusão, o que é natural: o pensamento liberal não acabou, não chegamos ao fim da História. O que ele lega ao leitor é o sentimento de pertencer a uma tradição anterior e que agora, com o fim dos totalitarismos do século 20 e a emergência de novos impasses (os limites da tolerância e do multiculturalismo, as fronteiras nacionais, a tensão entre direitos individuais e direitos de grupos desfavorecidos), está pronta a formular novas soluções. Apesar do grande vigor do momento liberal brasileiro, ainda pecamos na falta de densidade filosófica e histórica. O liberalismo antigo e moderno pode servir de inspiração para um trabalho que não é mais de extensão, mas de profundidade. A meta é elevada.
Por: Joel Pinheiro – Economista e filósofo, colunista da Folha e Exame Hoje. Colaborador do MyNews