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Homenagem: Réquiem para Malah, o paladino da charge pantaneira

Nas primeiras horas deste triste sábado, 25 de maio, em Campo Grande, eternizou-se o chargista e artista gráfico Augusto Alexandrino dos Santos, mais conhecido como Malah, depois de uma brava e solitária resistência a uma sucessão de agravos decorrentes do diabetes (perda quase total da visão e complicações renais). O apelido foi ganho na juventude, quando praticava o pugilismo, por causa de sua similaridade com o lendário boxeador brasileiro Malah, de quem era admirador.

Filho único de um modesto combatente da Coluna Prestes, Malah fez jus à ascendência peregrina de seus pais, residentes no humilde bairro portuário da Cervejaria, na outrora progressista Corumbá de todas as lutas e sonhos. Em tenra idade, até por razões de sobrevivência, iniciou-se talentosamente nas artes gráficas por meio do lendário pintor corumbaense Hélio Nunes, e com igual generosidade revelou e incentivou diversos talentos de diferentes gerações, tanto nas artes plásticas (como o talentoso Edson Castro, que apresentou para o imortal Jorapimo), como no cartum e na serigrafia.

Em plena juventude, fez uma breve mas marcante incursão pela radiofonia corumbaense, durante os anos de chumbo (começo da década de 1970), em que revelou seu cosmopolitismo e altivez. Isso, aliás, lhe custou muitas explicações aos órgãos da repressão política da época, pois, não bastasse sua estigmatizante ascendência de “revoltosos” da Coluna Prestes, o fato de trocar correspondência com radialistas de todos os cantos do Planeta (inclusive do bloco soviético) o desestimulou bastante. Pertenceu à talentosa geração de inesquecíveis radialistas como Gino Rondon, Edson Moraes e Juvenal Ávila, que nada deviam aos “papas” da radiofonia metropolitana do eixo Rio – São Paulo. Ainda que afastado do meio, foi um exigente cultor do jazz, do rock e da Música Popular Brasileira.

Em 1975, dá início à sua marcante passagem pelo magistério, como professor de desenho de raro talento e extraordinário trato humano. Os que, como eu, tiveram o privilégio de tê-lo como mestre no ensino médio, lhe são eternamente gratos, não apenas por desmistificar essa disciplina (que costumava castigar os alunos), mas pelas verdadeiras aulas de cidadania que recheavam o convívio com ele — sobretudo pela irreverência intrínseca à sua personalidade de revolucionário e inovador em tudo a que se dedicava, com humildade e generosidade. Decepcionado, deixou o magistério durante o derradeiro governo Pedrossian, quando se tornou um pioneiro empresário da serigrafia, tendo sido a alma da saudosa Seritex, da rua Quinze de Novembro.

Quem não se lembra do inimitável artista gráfico que generosamente emprestava o seu talento a todas as atividades da vida humana, num tempo em que não haviam os recursos tecnológicos disponíveis hoje? Além da sua incorrigível genialidade (que o tornara ainda mais generoso), ele formou gerações de profissionais vitoriosos nos mais diferentes centros urbanos da América Latina, com os quais mantinha até o último momento de sua Vida profundos laços de amizade e cumplicidade cidadã. Sou testemunha dessa magnanimidade quando, em setembro de 1991, graciosamente doou seus qualificados serviços para a reprodução de um emblemático cartaz criado a quatro mãos com o não menos genial artista plástico Rubén Darío Román Áñez, alusivo à primeira Semana da Cultura da Sociedade dos Amigos da Cultura, grito pioneiro pela preservação do patrimônio histórico e cultural de Corumbá, ao lado de queridos Amigos como a saudosa Helô Urt, o escritor Augusto César Proença, a jornalista Nicole Kubrusly, os empresários Armando Lacerda e Mário Sérgio Abreu, o tenor Lincoln Gomes e a delegada Sidneia Tobias.

Essa generosidade não se limitara à produção de layouts gráficos, mas logomarcas, programas visuais, cartuns, charges e caricaturas memoráveis, hoje perdidas pelo mundo afora, pois seu rico estúdio ficara reduzido a pequenos “ajuntamentos” de matrizes, papéis, cópias e documentos de valor histórico e sentimental extraordinário que a ganância de alguns e a mesquinhez de outros condenaram à extinção, como a sua própria história de vida, depois de ter dado literalmente a alma às cores das mais diferentes atividades culturais, desportivas, sociais e políticas de nossa cada vez mais tacanha elite decadente (na política, no carnaval, nos esportes, nas festividades, na educação, na cultura e nas atividades comerciais).

Pouquíssimas pessoas têm conhecimento, mas em seus memoráveis tempos de sucesso empresarial costumava socorrer literalmente amigos ou colegas de ofício de uma forma discreta. Diversas vezes participou de, digamos, leilões de bens arrestados por inadimplência, adquirindo a titularidade de determinados bens, mas deixando com os seus proprietários originais como se fossem fiéis depositários. Da mesma forma, já sem tantos recursos e com as limitações impostas pelo diabetes, certa vez emprestou um significativo valor a um ex-colega de magistério, sem nunca ter se esforçado em resgatá-lo, ainda que estivesse precisando adquirir medicamentos de alto custo, sobretudo para a retinoplastia que não conseguiu fazer na capital.

Como reconhecimento em Vida de tantos aportes feitos à muitas vezes ingrata gente pantaneira, tentamos trazê-lo de volta às atividades empresariais, tornando-o sócio de um empreendimento editorial para o qual ele dedicou seu inesgotável talento, mas que até o dia de sua derradeira e solitária partida ainda não dava sinais de se concretizar, e não por falta de empenho de seus pares, que, como ele, alheios aos esquemas vigentes, não conseguiram sensibilizar o establishment.

Sobreviveu a oito meses de exílio involuntário na capital do estado, onde era refém das distâncias e de sua precária saúde. Ao sair, em setembro de 2012, de Corumbá, em plena efervescência político-eleitoral, profetizava aos amigos o seu maior temor: não poder voltar a enxergar as cores da terra para a qual dedicara os melhores anos de sua existência. De fato, ele não se imaginava vivo sem poder ver literalmente o universo pantaneiro, fonte de sua talentosa Vida, até por razões de sobrevivência. Em suas agora saudosas reflexões telefônicas madrugada adentro revelava que começava a enxergar com a memória (digo eu, com a generosa alma que tinha), a despeito da injustificável dificuldade que o tornou refém em seus derradeiros anos. Se, por um lado, contava com a amizade sincera de velhos amigos, por outro lado, a insensibilidade de pessoas-chave na solução de seu problema de saúde tornara insustentável a longa espera por pequenas atitudes, bem menores que sua vontade de continuar contribuindo para a dignidade e o esplendor cultural da cada vez mais provinciana terra de Lobivar de Mattos, de Pedro de Medeiros, de Jorapimo, de Wega Nery, de Helô Urt…

Em seu último contato telefônico, se revelava feliz e esperançoso (sempre manifestando sua gratidão pelos Amigos Waldir Caldas, Maria Nely Bernal e Júlia Ojeda, entre outros), até porque a vista estava melhor, embora o inchaço das pernas o preocupasse, mas não o bastante a ponto de lhe tirar alegria de acreditar na Vida, como peregrino, como genial paladino da charge, por meio da qual enxergava o seu tempo e o mundo com o profundo olhar de caricaturista silenciado por situações adversas que jamais lhe roubaram a vontade de viver, de lutar e de sobrepor.

Até sempre, querido Amigo e Companheiro Malah, cuja memória estará sempre a nos levar avante nesta terra cada vez mais pobre de gente como Você, mas até por isso mais urgente das transformações por que nossas gerações tanto lutaram! Tenha certeza de que seus descendentes têm e terão orgulho de seu legado de dignidade, generosidade, talento e altivez, tão necessários nestes mesquinhos tempos de triunfar a qualquer preço…

Por: Ahmad Schabib Hany

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