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Uma Corumbá Histórica de Abílio Leite

Ficção que se infiltra na história real, simples e cotidiana da cidade de Corumbá dos anos 30 aos 60 do século passado movida pela autoridade de observador livre. É o verdadeiro, com liberdade da expressão, que vai saborosamente ao fictício, sem culpa e sem agressão.

É o livro “Histórias de Muito Antes” (2004), de Abílio Leite de Barros. O estilo do autor é o clássico discursivo colocado de modo agradável, bem humorado, leitura fácil, mas carregada de profundos significados acerca da condição humana. Ele me lembra Balzac (Honoré de Balzac — escritor francês, 1799-1850), que compondo enredos despretensiosos nos trouxe compreensões muito sutis sobre a alma, desafiando as ciências humanas sistematizadas.

Na primeira parte, “Uma História de Amor e Uma Rapsódia Bufa”, trabalha com o sangue oculto das tragédias sentimentais do homem. Um padre logo surge à cena lutando ferozmente contra o calor dos próprios instintos, a natureza humana e animal sendo asfixiada pelo espectro intelecto-espiritual sequioso de transcendência.

As belezas filosófico-doutrinárias morais preconizadas pelos pais da Igreja, sofrendo poderosas ameaças de obliteração, sob o império do corpo que clama pelos sabores do sexo ao influxo de uma arrebatadora paixão. Professor numa escola católica de moças vê-se enredado pelos sentimentos, às voltas com a força e a pureza de uma das jovens — que enlouquecida e doente diante do amor impossível — dele, que foge de Corumbá para não sucumbir à tentação avassaladora, foi “encontrada morta, sem bilhetes, em sua cama de solteira”.

Na composição “Vida, Paixão e Desencantos de um Revolucionário”, toda ambientada na velha Corumbá; o personagem Dom Carlos vive o sonho revolucionário comunista. No fulcro da trama o romance com Maria — proxeneta paraguaia, com quem acaba fundando, numa casa de permissividade que montaram – uma “célula” comunista clandestina do Movimento Revolucionário Independente (MRI), “contra o capitalismo imperialista dominador”.

Um drama: “socializar” a cama, pois, afinal, era o ofício de Maria PP (pp, pelego preto, por causa de sua abundância de pelos). Para vencer o ciúme, confortavam-se na base doutrinária de que o amor possessivo é “o mesmo mal que governa os desejos doentios de posses materiais, causa da perversão capitalista”.

Ideologia rima com boemia. Grandes nomes ativistas, bastante conhecidos de Mato Grosso do Sul depois desmembrado, acorreram à época para fundação do Partido em Corumbá. Todos boêmios de então. A boemia desses intelectuais pode ser entendida como linimento para o choque entre o gênio teórico da libertação e a realidade do predomínio opressor de longo curso.

Confusão mental, atitudes contraditórias de aceitação versus rejeição, desejo de esquecimento e conflitos sobre a sexualidade são comuns do estereótipo. A maior infelicidade: tinha tudo do perfil, nos acontecimentos políticos de 1964, o protagonista Dom Carlos Frederico de Albuquerque e Castro, para ser preso e torturado ou “desaparecido”, mas não o foi.

A 31 de março, em vez de discreto, bradava discursos “vermelhos” por todas partes corumbaenses e diante de tanta gente e de autoridades; contudo, respeitado e querido por todos, que evitaram reprimi-lo, quedou-se envergonhado por não se tornar um mártir da revolução.

Na segunda parte da obra, “Vozes que Ainda Ouço”, o escritor Abílio Leite de Barros revive tempos e espaços mágicos da infância e da adolescência num mundo diferente, conservador, famílias coesas de costumes moderados, a hipocrisia humana subjacente, mas a vida transcorrendo com a lentidão permissora da construção das fantasias e dos brincos da mocidade. Ele trabalha num crescente dos fatos-ficção da infância à implacável adultidade — daquelas que destroem sonhos, desdenham a ingenuidade, desacreditam a pureza e se dão tristemente a concretude da responsabilidade.

Disse o ponto de vista de pré-adolescente em Corumbá diante do anúncio da Segunda Grande Guerra. Por entre simpatizantes “germanófilos”, os medos da população adulta, as defi nições cinematográfi cas de mocinho e bandido, mascando chicletes e dançando foxtrote, diz, “ninguém deu importância à guerra que passou por nós”.

Narra o rigor e a rotina da escola repleta de acontecimentos secretos; foca os movimentos de um pequeno grupo de amigos adolescentes na guerra dos sexos que ocorria veladamente. Pudicícias fingidas e ocultos extravasamentos. Os mistérios das mulheres. Sonhos de garanhão. Professores e disciplinadores rígidos, pais vigilantes, religião opressora, moralismos e preconceitos, chantagens, figuras populares (toda cidade tem seu mendigo mais famoso), coreto, “domingueiras” inesquecíveis.

São também obras de Abílio Leite de Barros, nascido em Corumbá, bacharel em direito e licenciado e bacharel em Filosofia pela Universidade do Brasil no Rio de Janeiro: Gente Pantaneira (1997); Uma Vila Centenária (ensaio comemorativo aos 100 anos de Campo Grande, 1999); e Opinião (2004).

Ocupa a cadeira número 32 da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, tendo substituído Eduardo Machado Metello (memória). Patrono: Weimar Torres. Quem o lê não deveria preocupar-se com os limites entre ficção e realidade, pois cada leitor que deseja aprender somente o fará com aderência se souber reescrever mentalmente, com novas cores e possibilidades de desdobramento, inscrevendo um novo livro na própria sensibilidade.

 

Por: Guimarães Rocha – Grandezas da Literatura (Colunista do CGNews)

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