Entre os austeros salões do Instituto Fernando Henrique Cardoso e a vista que ele oferece para o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, o tempo e a história se cruzam de maneira emblemática. Sinal dos tempos, a antiga sede do Automóvel Clube fica numa rua por onde hoje já não passam carros, engolfada pela metrópole que transformou o local em calçadão.
Testemunha da história, o Anhangabaú presenciou o maior comício pelas Diretas-Já, o movimento que projetou para o grande público o sociólogo e senador Fernando Henrique Cardoso. Foi também naquela época que, pela última vez antes do impeachment de Fernando Collor e a transição para o governo de Itamar Franco, houve uma relação de afinidade política entre os líderes do PT e aqueles que se tornariam os líderes do PSDB, um partido criado quatro anos depois.
No saguão de entrada do sexto andar do prédio, uma mesa expõe as cartas dos contemporâneos de FHC no poder mundial. Fidel Castro tem a mais longa delas, com o surrado discurso anti-imperialista. Tony Blair se apresenta para uma parceria a procura da Terceira Via. Um tempo em que o mundo ainda não tinha conhecido a vitalidade dos países emergentes, que mal começavam a ser chamados assim, e reflexo de um século que ficou para trás, no qual ainda se vivia a herança dos blocos comunista e capitalista.
No seu amplo gabinete, portanto uma espécie de ponto de encontro entre o tempo e a história, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu o iG para uma entrevista em que navega por ambos, às vésperas de completar 80 anos de idade.
Dos cinco ex-presidentes brasileiros vivos, todos posteriores ao fim do regime militar, Fernando Henrique foi o primeiro a decidir que não iria retornar à política eleitoral. José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco foram às urnas e são hoje senadores. Luiz Inácio Lula da Silva prepara, como FHC, o seu próprio instituto, mas tem um futuro eleitoral ainda em aberto.
O iFHC permitiu a Fernando Henrique resgatar seu maior feito, a estabilização econômica, período documentado com tecnologia e muitas informações, graças a uma exposição interativa no salão do andar de baixo. Como boa parte do período FHC, a exposição e seu conteúdo parecem seguir desconhecidos até mesmo dos seus partidários – e como outros pontos de seu governo, é algo que merece ser (re)visitado.
No presente, FHC se delicia com a carreira de palestrante internacional. Desde sua saída da Presidência, em 2003, houve ano em que ele pagou de impostos o que ganhava no total como principal autoridade do país. “Nunca imaginei que ganharia para falar”, conta o ex-presidente que revela o valor da tabela internacional: US$ 100 mil (R$ 160 mil) por conferência. Além das palestras, FHC tem uma ONG com outros ex-presidentes de sua época para discutir uma mudança na política contra as drogas – e a novidade é que esse grupo assume o fracasso da repressão ao consumo.
Esses contatos e obrigações o transformaram literalmente num cidadão do mundo. Ele passou, por exemplo, metade do mês de maio fora do Brasil, num pinga-pinga que revela a ótima saúde de quem, aos 80 anos, faz exercícios, inclusive com pesos, pelo menos três vezes por semana: em apenas 15 dias, FHC passou por França, Espanha, Portugal, Espanha novamente e Estados Unidos, onde teve trabalho em Washington e Nova York. Quando está em São Paulo, Fernando Henrique passa as manhãs em casa, onde lê bastante e faz ginástica, e às tardes tem uma agenda lotada no iFHC, onde continua rodeado de antigos colaboradores, muitos deles ministros de seus dois governos.
Aos 80 anos, mantém o bom humor e conta que diariamente se levanta de bem com a vida. “Gosto de viver intensamente”, disse ao iG. No encontro do tempo com as pessoas, FHC lamenta a perda de tanta gente que lhe foi querida, a começar pela mulher, Ruth Cardoso. E se mostra aberto a relações, até mesmo um namoro, que lhe enriqueçam no que efetivamente preza: “O que me move são ideias, pessoas”, diz.
Nascido no Rio de Janeiro, no dia 18 de junho de 1931, Fernando Henrique viveu a infância num país rural, com alta taxa de analfabetismo e que era tido como “um arquipélago”, tamanha era a dificuldade de se transitar entre suas províncias. “O Brasil era um país pobre”, resume ele. Na análise da história, ele acha o governo Dilma Rousseff uma incógnita e reclama do distanciamento adotado por Lula e das picuinhas entre PSDB e PT.
O sociólogo enumera três feitos básicos que mudaram o rumo do Brasil em pouco mais de duas décadas: a democracia, a abertura econômica e a estabilização inflacionária. Para ele, são esses os elementos da modernização atual. “O povo brasileiro deu certo”, disse ao iG.
Por: Da Redação