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Sociedade esclarecida

Você faz parte da sociedade esclarecida? A resposta é complicada. Pertencer ao segmento “esclarecido” de uma sociedade – qualquer uma – depende de fatores tão múltiplos e diversificados que, no fim das contas, mesmo aqueles que não pertencem a ela acabam acreditando que sim, que pertencem, até porque estamos tratando de um conceito tão amplo que qualquer cretino absoluto com meia dúzia de opiniões sobre coisas variadas acha que está no topo do titanic gritando que é o rei do mundo.

Mas para ser uma pessoa esclarecida de qualquer sociedade existem alguns pré-requisitos: saber ler e escrever (conhecer outras línguas é bom, mas não é fundamental, pois o que existe de poliglota babando na gravata por aí não está escrito) é o princípio de tudo. Quando digo saber ler e escrever é bom que fique claro que não se trata apenas ser alfabetizado, nada disso. Tem que ter dentro de si uma fúria curiosa para digerir textos que vão desde bula de medicamento até mangás publicados em japonês.

Outra coisa: ler não deve se restringir a palavras escritas. A leitura deve englobar imagens, sons, cheiros, paladar, enfim, a tudo aquilo que se relaciona com sentidos. Leitura – é bom repetir – é um ato pelo qual se utiliza a sensibilidade para decodificar, internamente, os estímulos externos. Quanto mais ampla a experiência de leitura (todas elas) maior a noção de mundo, maior dimensão da cultura, maior, naturalmente, o esclarecimento sobre as coisas existentes.

Esse é o começo de tudo. O passo seguinte é ter consciência de que informação e conhecimento (nos diversos sentidos filosófico da palavra) são coisas completamente diferentes. É bom raciocinar: o decoreba obsessivo que se aproveita de sua memória estupenda pode até confundir o público com o dito “saber enciclopédico”, mas é bom deixar claro que esse não é necessariamente um sujeito esclarecido. Ele pode até saber muitas coisas, mas não tem a sensibilidade amplificada para ouvir e ver os sinais do “espírito do tempo”, por exemplo. Qualquer fato fora do contexto deixa o cara fora do eixo, confuso e obnubilado.

Estatisticamente, a sociedade esclarecida num País como o Brasil deve girar em torno de 3 e 5% da população economicamente ativa. Eles estão em todas as classes sociais e não significa que estejam alinhados politica ou ideologicamente com o mercado das ideias que atualmente está em voga nas universidades onde proliferam, por exemplo, o famoso conceito “educação-casas-bahia”. São pessoas que tem uma luminosidade específica, e que em função de fatores objetivos e subjetivos conseguiram adquirir uma aptidão para perceber o mundo do lado de fora da chamada caverna platônica.

Trata-se do sujeito dialético, perceptivo, sardônico, capaz de rir de si próprio, e que foi aprendendo por conta própria que somos insignificantes diante da vida, embora considere que, já que estamos vivos, é melhor então viver intensamente, inclusive naqueles momentos em que há, no domínio do corpo e da alma, uma imensa falta de vontade de viver.

A sociedade esclarecida é herdeira do iluminismo. Ela aprendeu a importância da dialética e compreende as entrelinhas das coisas. Não acredita em ídolos e heróis. Não tem a ingenuidade carola dos membros da “comunidade do bem”. São na grande maioria ateus (embora considere a religião um fenômeno humano importante). Não engolem passivamente as mensagens da mídia, pois tem noção clara da importância do contexto e do subtexto do que se chama convencionalmente de a “sociedade do espetáculo”.

Conheço taxistas e pedreiros esclarecidos. E também conheço doutores e uspianos que nem chegam perto desta área. Conheço socialistas entusiasmados que não perdem a oportunidade de fazer arenga a favor dos pobres e oprimidos desde que estejam com a taça de champanhe francesa nas mãos. Denunciam as desigualdades e iniquidades sociais com a boca cheia, mas na primeira oportunidade saqueiam recursos públicos sem nenhuma dor de consciência. Conheço liberais obtusos. Conheço direitistas sofríveis. Conheço ogros e mentecaptos de todos os gêneros que posam de personagens importantes de si mesmos.

Claro, essas não são pessoas esclarecidas, pois o esclarecimento exige uma dose de senso ético que sempre tenta conectar o discurso público com as ações privadas. É preferível conversar com corruptos autênticos do que com puritanos de fachada.

A autenticidade de pessoas esclarecidas demarca o espaço de sua personalidade especial. A clareza com que se manifestam (mesmo em seu silêncio ou omissão rotundos) é perceptível aos olhos daqueles que ainda não atingiram o estágio confluente do esclarecimento. Há pouca esperança para a sociedade esclarecida. A maioria bovina vencerá sempre.

 

Por: Dante Filho – Jornalista (dantefilho@folha.com.br)

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