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Professora Eunice Ajala Rocha, a história com nome e sobrenome

 

Com o falecimento da Professora Eunice Ajala Rocha, ocorrido na primeira semana de 2013 – a apenas dois meses do sepultamento de seu segundo esposo, Nineve Franco de Arruda –, encerra-se um rico período da história recente de Corumbá, ainda não suficientemente conhecido pelas novas gerações de corumbaenses e sul-mato-grossenses.

Docente aposentada da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, lotada no então Centro Universitário de Corumbá, ela é muito mais que uma proba ex-secretária de Educação e Cultura do município da primeira gestão do prefeito Fadah Scaff Gattass, por indicação do então vereador peemedebista Valmir Batista Corrêa: como pesquisadora resgatou o ciriri e o cururu para a cultura regional e revelou para a posteridade talentos até então anônimos, como o cururueiro Agripino Magalhães Soares, o da viola de cocho (celebrizado pela saudosa Helô Urt quando gestora da Casa de Cultura Luiz de Albuquerque), e como cidadã foi protagonista de uma fase épica (mas nem por isso menos tumultuada) da política corumbaense, em que o célebre vereador Edu Rocha, seu primeiro esposo, resultou metralhado na saída da Câmara Municipal, depois de denunciar autoridades federais baseadas em Corumbá envolvidas com o tráfico de carros contrabandeados – os famosos “rabos-de-peixe” –, cujo mandante permaneceu impune, apesar de todas as evidências e reportagens publicadas numa das maiores revistas semanais de então, a Manchete, que dedicara a capa ao famigerado fato.

Há um episódio ilustrativo da urbanidade – ou, melhor, da magnanimidade – do casal Eunice – Edu Rocha, conhecido por pouquíssimas pessoas, que foi narrado pelo falecido protagonista e confirmado pela professora, duas décadas atrás: a poucos meses do assassinato do vereador Edu Rocha, em fins da década de 1950, um imigrante palestino, então recém-chegado, aportara no início da manhã à casa do renomado político para, como mascate, oferecer suas mercadorias na típica mala de fibra, tendo sido recebido pela esposa. Como o mascate ainda não falava o português, algum conterrâneo lhe fizera um texto grafado em árabe com o que deveria ser um preâmbulo de abordagem em português para expor os seus produtos. Contudo, por brincadeira de mau gosto ou pura má-fé, o conterrâneo do mascate, depois do cumprimento inicial, escrevera algo como “você quer dormir comigo?”, em vez de solicitar permissão para iniciar a demonstração de seus artigos à cliente. Tomada pelo susto (imagine-se o impacto daquelas palavras na metade do século passado), a professora Eunice pediu ao mascate que repetisse o que lera, e ele, com a inocência de quem não sabia o que estava lendo, insistira na proposta indecorosa. Ato contínuo, ela pediu licença para chamar o esposo, que se preparava para sair, que, depois da leitura do cumprimento com a dificuldade característica de um recém-chegado ao país, ouviu atônito a repetição do bizarro “você quer dormir comigo?”. Mal refeito da inusitada proposta, pediu à esposa que servisse um café ao mascate e depois de telefonar para alguém convidou o imigrante que o acompanhasse para poder compreender seu propósito. Algumas quadras depois, chegam a um tradicional estabelecimento de um imigrante libanês em pleno centro da cidade e Edu Rocha pede ao mascate que voltasse a ler sua “cola” diante do comerciante, que ruborizado lhe traduziu os termos de sua proposta. Envergonhado, o mascate pediu, de joelhos, perdão pelo ocorrido e se despediu deles, apressadamente, à procura do conterrâneo irresponsável, que por sua brincadeira poderia ter lhe causado a própria morte se não tivesse a sorte de ter sido recebido por esse casal afável. Meses depois, ao saber da morte daquele polido senhor que praticamente lhe salvara a vida, ele fez questão de ir ao seu funeral em sinal de gratidão. Por coincidência da vida, a Professora Eunice, antes de ser docente do Centro Universitário de Corumbá, trabalhou num órgão do Ministério do Trabalho ligado à atividade marítima, sediado no extinto Serviço de Navegação da Bacia do Prata, cujo prédio era próximo da loja do já próspero comerciante palestino, situada também na rua Quinze de Novembro, o que possibilitou que ele retribuísse aquele gesto magnânimo com a amizade e o respeito de toda a sua família, tendo transformado um constrangedor episódio em uma anedota sem maiores consequências, algumas vezes contadas aos amigos mais próximos. Hoje, à exceção do comerciante libanês procurado por Edu Rocha para esclarecer o imbróglio, esses protagonistas não mais estão entre nós, mas deixaram uma lição de urbanidade e cosmopolitismo para a posteridade, a despeito do indolente descaso com a memória pública em nossa região.

A amnésia coletiva reinante no coração do Pantanal, aliás, é pródiga: personagens medíocres sem qualquer atributo meritório são alvo de repetidas homenagens em vida. Já personalidades com a biografia de uma cidadã digna e proba, porém discreta e humilde, como a Professora Eunice Ajala Rocha, passam despercebidas, quase anônimas, por nosso cotidiano de bajulações entediantes. Em 2002, o escritor Augusto César Proença e eu fizemos uma tentativa, lamentavelmente frustrada, de publicar uma versão em formato não acadêmico da dissertação de mestrado da Professora Eunice, em que faz generosos aportes à cultura popular e à identidade cultural da região. Decorridos dez anos, sequer a versão acadêmica de sua dissertação foi publicada. Talvez agora, com seu falecimento, os doutos do saber acadêmico tomem a – ainda que extemporânea – iniciativa de publicar seu trabalho, até para que não seja alvo de plágio pelos colecionadores de títulos acadêmicos que vivem a garimpar méritos a qualquer custo.

 

Por: Ahmad Schabib Hany
*E-mail: schabibhany@gmail.com