As deficiências do Arsenal de Marinha de Mato Grosso e a inconveniência de sua localização levaram o Ministro da Marinha, João Mauricio Wanderley a discutir a possibilidade de sua transferência. Segundo o ministro O Arsenal, ou pequeno depósito de munições navais, destinado unicamente aos reparos e fornecimento da Flotilha da Província de Mato Grosso, devendo receber com a abertura da navegação fluvial o devido desenvolvimento, não poderá permanecer no local, em que presentemente existe, e terá que ser removido para outro que reúna melhores condições.
Após a instalação do arsenal em Cuiabá em 1825 e por conta de uma série de equívocos e interesses políticos, ficou patente a péssima escolha do local de sua construção. Estes equívocos levaram a necessidade de sua transferência, conforme se pode comprovar na intensa troca de comunicações entre o Governo da Província de Mato Grosso e as autoridades navais. O mais grave entrave a sobrevivência do arsenal em Cuiabá, era sua localização. No período das secas sazonais, fenômeno típico dos pantanais e rios de Mato Grosso, os barcos ancorados no arsenal, pelo baixo volume das águas, não podiam sair do porto.
O Ministro da Guerra João Vieira de Carvalho em visita a Província de Goiás comunicou a Jose Saturnino, Governador de Mato Grosso, em ofício datado de 24 de julho de 1825, a determinação do Imperador D. Pedro I de se construir seis barcas canhoneiras na província, não determinado o local de sua construção, cabendo tal escolha as autoridades provinciais. Como parte desta intenção, o imperador nomeou por Decreto Imperial de 4 de novembro de 1824 o Tenente Coronel Antônio Joaquim da Costa Gavião como Governador das Armas de Mato Grosso. No entanto o Tenente Coronel Costa Gavião, após quase um ano de sua nomeação ainda não tinha assumido o posto. Sobre a não apresentação do Governador das Armas, Jose Saturnino noticiou ao Ministro da Guerra 3m 14 de outubro de 1825 quanto, porém ao Coronel Gavião Governador das Armas desta Província nenhuma notícia tenho dele, e nem tenho recebido carta sua.
Nesta época a Província de Mato Grosso era uma das mais distantes e esquecidas do império. Servir em Mato Grosso neste período era tido como castigo. A transferência do Batalhão Periquito da Bahia para Mato Grosso corrobora esta afirmação.
O Batalhão Periquitos embora tenha lutado contra Portugal em prol da Emancipação política do Brasile na Confederação do Equador, liderada por Frei Caneca em 1824, estava descontente com o tratamento dado pelo império às tropas de linha, em razão deste descontentamento, rebelaram-se contra o governo. A rebelião do Terceiro Batalhão Periquito na Bahia trazia no seu bojo um sentimento antilusitano. Ao ser transferido para Mato Grosso, esse Batalhão contribuiu para acirrar os ânimos contra os portugueses e teve participação ativa na Revolução Cuiabana em 1834, que dentre outros fatores tinha caráter antilusitana.
Em recente trabalho intitulado A Marinha do Brasil e a presença de seus militares na Fronteira Oeste do Brasil: O caso de Ladário, defendido em forma de Dissertação de Mestrado junto ao Programa de Mestrado em Estudos Fronteiriços da UFMS/Campus Pantanal, por Márcia Vaz de Mello Taube Maranho, a autora no terceiro capítulo do seu trabalho, analisa e procuradesvendar as motivações dos militares e as dificuldades e facilidades que encontram ao servir nesta região, o imaginário daquilo que pretendiam encontrar e o quanto deste imaginário tornou-se realidade (MARANHO, 2014).
Para alguns dos entrevistados de Maranho (2014) a realidade encontrada ao servir no Sexto Distrito Naval em Ladário, parece não encontrar eco no desejado. Ao entrevistar praças e oficiais arranchados na Base Fluvial de Ladário, Maranhoassevera que estes militares constituem parte expressiva da população que mora nas cidades de Corumbá e Ladário formado por praças e oficiais oriundos sobretudos da Cidade do Rio de Janeiro, sede do Primeiro Distrito Naval.
Ao ler o trabalho, especialmente o capítulo 3 onde Maranho (2014) entrevistou um grupo de militares, parte deles respondeu que Ladário estaria entre suas últimas opções, outros responderam que a região não possui boas escolas e hospitais. Existem ainda segundo a autora, entrevistados que disseram serem osladarensespossuidores de uma postura muito “acomodada”, que na realidade “transcende”as cidadese tem um caráter regional, provavelmente ligado à cultura local. Observam a falta de vontade para trabalhar, estudar e crescer na vida, tanto que são poucos os trabalhadores da Marinha que são naturaisda cidade (MARANHO, 2014, p. 76).
Num momento oportuno, pretende-se uma análise mais aprofundada das entrevistas constantes no trabalho de Maranho (2014), para não cair em armadilhas nem na Teia de Penélope, tecendo no presente texto alguns comentários. Estas visões estereotipadas parecem refletir a visão Colonizador/Colonizado, Oriente/Ocidente, ou ainda, no caso em tela, Sudeste/Oeste. No brilhante trabalho do Professor de Harvard Edward Said, intelectual palestino radicado nos EUA, o autor desmistifica as visões e versões sobre o Oriente e de como a sociedade europeia inventou o Oriente, uma invenção calcada no preconceito, na civilização versus barbárie.
Um excelente trabalho para se entender visões estereotipadas sobre Mato Grosso, é o denso trabalho deLilian da Silva Guedes Galetti. Nos Confins da Civilização: Sertão, Fronteira e Identidade nas Representações sobre o Mato Grosso. USP/2000, cuja leitura é interessante para se compreender o sertão e suas peculiaridades.
O Governador das Armas ao não se apresentar em seu posto na Província de Mato Grosso, talvez tenha sido motivado pela mesma cantilena que motivou os entrevistados de Maranho em conceituar a região como um lugar difícil de viver. Num dos escritos de Gonçalves Dias, percebe-se esta visão deturpada das gentes da terra do Brasil, segundo eleO índio era indolente e preguiçoso, porque a natureza, como mãi pouco providente que á força de extremos e caricias mal educa os seus filhosonde O sertanejo não precisa trabalhar mais que uma semana no seu mandiocal para ter seguro o pão de um anno inteiro (DIAS, A. Gonçalves. Brasil e Oceania. Revista Trimensal do Instituto Historico, Geographico e Ethnographico do Brasil.Tomo XXX. Rio de Janeiro: B.L.Garnier-Livreiro-editor, 1867. p. 140 ).
Não nos interessa esta ambivalência, estas visões e versões sobre o sertão, mas sim afastar o estigma da barbárie e se aproximar da alteridade, tão cara a todos.O Império do Brasil ao projetar a construção de um arsenal de marinha no sertão de Mato Grosso desejava unir não separar, defender não entregar, e, acima de tudo, construir uma força naval eficiente, num momento de formação e afirmação do Estado Nacional Brasileiro.
Mesmo sendo um lugar difícil de viver, a construção das barcas canhoneiras no Arsenal de Marinha de Mato Grosso prosseguiram a passos lentos, reforçando a ideia da transferência do arsenal.
Neste sentido, o Presidente da Província de Mato Grosso André Gaudie Ley, em ofício de 5 de fevereiro de 1831 enviado ao Ministro da Marinha Francisco Vilela Barbosa, informando as razões do atraso da construção das Barcas Canhoneiras, descreveu mais um dos inconvenientes do local da escolha para construção do arsenal[…] “quando se chegarem a prontificar [construir] todas as seis barcas, sem duvidar que se lhe não dando exercício se tornariam inservíveis […] porque o Rio Cuiabá só pode oferecer navegação às referidas barcas em determinada estação.
A pouco profundidade do Rio Cuiabá no local da construção do arsenal, era do conhecimento todos os envolvidos na construção, apenas o Governador da Província, responsável pela escola, parece não tomado ciência, fato estranho para um homem de capacidade excepcional. O Governador era formada em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra, foi professor da Escola Militar do Conselho do Imperador e autor de vários livros de uso militar, engenharia ensino. Dentre suas obras, destacam-se o Plano para Divisão das Comarcas, Cidades, Vilas, Povoações e Paróquias da Província de Mato Grosso, 1827-1828.
As discussões sobre a transferência do arsenal entrou na pauta de todos os Ministros da Marinha. No Relatório anual de 1841, o Ministro da Marinha informa a necessidade de se transferir o arsenal de Cuiabá para Vila MariaUltimamente, participa que julga de muita utilidade remover da Capital para a Vila Maria o Comando das Armas, os Corpos Militares, e o Arsenal de Guerra, também transferido o de Marinha para a dita povoação situada na confluência do Rio Jauru e Paraguai.
A transferência do arsenal continuou pautando as discussões no Ministério da Marinha. Augusto Leverger em seu retorno a província nomeado em 11 de novembro de 1844, Comandante das Barcas Canhoneiras e Diretor do Trem Naval de Mato, recebeu instruções do Ministro da Marinha para proceder a estudos sobre a conveniência ou não, de transferir o Arsenal de Cuiabá para Vila Maria Examinará com o maior cuidado o lugar da Campina sobre a margem do [Rio] Paraguai, perto de Vila Maria, onde já se pretendeu colocar os Arsenais de Marinha e de Guerra, a fim de informar circunstanciadamente sobre a conveniência de transferir-se para aquele ponto o Estabelecimento da Marinha daquela Província, fazendo ver as vantagens e inconvenientes, que semelhante transferência pode oferecer . Em resposta ao Ministro da Marinha, Augusto Leverger se posiciona favoravelmente a transferência,às vantagens mais salientes desta transferência são a maior facilidade para as nossas barcas navegarem o [Rio] Paraguai, e a maior facilidade na aquisição de madeiras para a construção.
O Presidente da Província Manuel Felizardo de Souza e Melo, se colocou contra a transferência proposta por Leverger, alegando que as vantagens não compensavam as desvantagens. Para ele o arsenal longe da vista do governo poderia dificultar a fiscalização e sofrer ataques numa eventual guerra com a Bolívia.
Ao declarar a incapacidade do governo de fiscalizar os gastos públicos, fora dos limites de Cuiabá, o Presidente da Província deu margem a dúvidas quanto a sua capacidade de administrar. Ao alegar zelo pela administração da coisa pública e com as despesas da construção das barcas, convenceu o Governo Imperial a manter o Arsenalde Marinha no Porto de Cuiabá. Através do ofício de 17 de setembro de 1849, o Imperador D. Pedro II comunicou sua decisão manda declarar a Vossa Excelência [Presidente daProvíncia], que, a vista das razões a tal respeito apresentadas, não deve ter lugar à referida mudança, o que comunico a Vossa Excelência para seu conhecimento.
A decisão do Imperador colocou uma pá de cal nas pretensões de Leverger. Somente em 1855 o assunto retornou a pauta. O Ministro da Marinha, João Mauricio Wanderlei diante das dificuldades pelas quais passava o arsenal propôs sua transferência para Vila Maria, ressaltando a grande quantidade de madeiras existentes e que poderiam ser transportadas até Vila Maria através dos Rios Sepotuba e Cabaçal. O Ministro destacava ainda, a possibilidade da construção de uma fábrica de pólvora, utilizando-se do salitre, encontrado nas nitreiras naturais próximas a Santa Maria, atual Cáceres.
A ideia da transferência do Arsenal de Cuiabá para Vila Maria, defendida por Mauricio Wanderley, não encontrou eco nos seus sucessores. O Ministro da Marinha, Antonio Paulino Limpo de Abreo, em 1858, se colocava contrário à mudança.Seus sucessores, indiferentes ao assunto, limitavam-se a informar as dificuldades do arsenal, sem desejo manifesto de transferi-lo. No Relatório de 1863, apresentado pelo Ministro Francisco Carlos D’Araújo Brusque, pode-se encontrar registros sobre condições do arsenal:continua este arsenal a lutar com as dificuldades resultantes da limitação do seu pessoal, que mal pode fazer os trabalhos mais urgentes.
A ideia de transferir o arsenal ficou prejudicada com a invasão de Mato Grosso em 1864 pelas forças de Lopez, cuja invasão anunciada ensejou a mais sangrenta e letal guerra travada nas Américas, a Guerra do Paraguai.
Na última série de quatro artigos será discutida a retomada da ideia de transferência do arsenal e sua materialização em 1873.
Por: Saulo Alvaro de Mello
Mestre em História UFGD