O justiçamento é a aplicação de penas ou gravames a alguém, ou a algum grupo, ao arrepio da lei e do Direito.
Justiçamento e Justiça guardam semelhança na estrutura vocabular. Uma primeira interpretação, que se guiasse apenas pela aparência das palavras, poderia conduzir à ideia de que justiçamento e Justiça são conceitos próximos.
Entretanto, se penetrarmos no sentido axiológico desses termos, concluiremos que Justiça e justiçamento fundam-se em princípios antagônicos.
O justiçamento pode ser praticado em plano local (numa cidade), em plano nacional (num país), ou em plano internacional (no mundo).
Comecemos pelo plano local. Um indivíduo comete crime de estupro vitimando várias crianças. Deve ser eliminado, morto? De modo algum. Deve ser julgado, tem direito a julgamento.
Mas terá direito de defesa? Um advogado que aceite a defesa desse criminoso não conspurca suas mãos de lama?
O advogado nunca se suja na sujeira de um delito, por mais bárbaro que este seja, porque o advogado não defende o crime, mas sustenta um princípio fundamental de Justiça: ninguém pode ser julgado ou condenado sem o direito de defender-se. A respeito disso, Rui Barbosa deu uma lição imortal. Indagado por um colega de ofício se devia aceitar a defesa de um militar monarquista que assassinou um líder civil republicano, num caso envolvendo família, o grande Rui disse que sim, pois o ideal republicano proclamava o direito de defesa em favor de todos os cidadãos, e não apenas em favor dos cidadãos republicanos.
Na hipótese que estamos citando, o advogado pode colocar dúvidas que devem ser solucionadas no transcurso do processo: o estuprador foi mesmo aquele indivíduo que está sendo apontado como autor do crime hediondo? Os exames periciais existentes nos autos foram feitos de maneira correta? Não é sabido que, no caso de crimes sumamente graves, a possibilidade de erro no indiciamento do culpado é muito maior? E ainda que se prove a culpa, não há atenuantes? Não há pelo menos uma atenuante? Não foi o próprio estuprador abusado quando criança? Se foi abusado, essa circunstância não reduz a maldade do seu delito?
Se passamos ao plano nacional, as razões que amparam o direito de defesa são as mesmas. Na História do Brasil, que trágicos foram os justiçamentos praticados em períodos de ditadura. Opositores do regime, nessas fases históricas, foram mortos e, em alguns casos, nem direito a sepultura tiveram. Nem de qual crime estavam sendo acusados souberam.
E agora, que dizer do justiçamento em plano internacional? Pode alguém, acusado da prática de nefandos atos de terrorismo, ser considerado o mentor desses atos, sem prova pública e contraditória da culpa? Pode ser morto desarmado e na frente dos familiares? Pode seu corpo ser lançado ao mar? Pode ser justiçado sem dizer quais eram as razões do seu combate?
O justiçamento, seja em plano local, seja em plano nacional, seja em plano internacional, é sempre uma prática abominável, que merece o repúdio, não apenas do jurista, mas de todas as pessoas portadoras de consciência limpa.
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João Baptista Herkenhoff, 74 anos, é Professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), palestrante e escritor. Autor de Mulheres no banco dos réus – o universo feminino sob o olhar de um juiz. Editora Forense, Rio, 2008.
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