Batizada de orçamento secreto, a distribuição de recursos do Orçamento Federal por meio das chamadas emendas de relator alterou o modo como o governo brasileiro e os partidos negociam apoio político. Ao mesmo tempo em que passou a destinar mais recursos nos últimos três anos para emendas parlamentares e ampliou a participação do Centrão em sua gestão, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) reduziu, na comparação com seus antecessores, a presença de filiados a legendas em cargos comissionados do alto escalão da administração federal, tradicionalmente uma das principais moedas de troca com as siglas.
A mudança de cenário foi detectada em um levantamento feito pelos pesquisadores Sérgio Praça, da Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV/CPDOC), e Karine Belarmino, da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos. Os dados apontam que, dos quase quatro mil indicados em altos cargos comissionados em dezembro de 2021, 9% tinham alguma vinculação a legendas, mesmo percentual registrado em 2020.
O índice é menor do que o dos governos da ex-presidente Dilma Rousseff em 2015, quando 25% dos ocupantes de cargos comissionados tinham vinculação a partidos, principalmente o PT, e do ex-presidente Michel Temer (2016 a 2018), quando esse percentual oscilou entre 20,5% e 23% e parte significativa dos postos contava com filiados ao MDB e PSDB.
Negociação mais efetiva
Com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Portal da Transparência Federal, a pesquisa mapeou a filiação partidária dos ocupantes do chamado Grupo – Direção e Assessoramento Superiores (DAS) 4, 5 e 6, e os Cargos em Comissão de Natureza Especial (NES) — postos não só com maiores salários, mas com poder decisório sobre formulação e execução de políticas públicas.
O cientista político Sérgio Praça destaca que a queda da influência partidária nesses cargos é positiva, à medida que pode reduzir riscos de escândalos de corrupção nos órgãos federais, como mostra em trabalho publicado com Matthew Taylor (American University) e Katherine Bersch (Davidson College) na revista “Governance” em 2017. No entanto, o menor número de indicações de filiados a partidos políticos para cargos comissionados não significou, no governo Bolsonaro, uma “despolitização” das indicações. Alas ideológicas de bases de apoio ao presidente, como os militares e olavistas, acabaram privilegiadas nas escolhas para o alto escalão do governo. Outro fator que explica a mudança é que Bolsonaro não integra um partido com estrutura organizada e tem mais dificuldade de negociação com as legendas, que viram no orçamento secreto no Congresso e na figura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um meio de negociação mais efetivo. Embora Bolsonaro tenha se filiado ao PL no fim do ano passado, permaneceu dois anos sem legenda.
“O fato de Bolsonaro ter sido eleito por um partido mais frágil (PSL), com o qual rompeu depois, dificultou a ocupação do Estado pelo partido do presidente. A consequência é que a governabilidade ficou afetada”, avalia Praça. “No caso de Bolsonaro, esses cargos passaram a ser ocupados por critérios não partidários. Os militares possivelmente pegaram vários postos, assim como amigos do presidente e de sua família. Bolsonaro prioriza bases ideológicas, o que acaba se refletindo nos cargos.”
O levantamento aponta que a participação do Centrão em cargos de confiança foi maior na história recente durante o governo Temer, quando membros dessas legendas chegaram a representar metade dos filiados a partidos em postos comissionados. Hoje, eles são 27% do total.
Por outro lado, desde 2020, o governo Bolsonaro ampliou a destinação de emendas parlamentares ao orçamento, especialmente as de relator, em patamares maiores que os liberados por seus antecessores. No ano passado, o governo empenhou, ou seja, se comprometeu a gastar, R$ 34,9 bilhões em emendas, segundo dados do portal Siga Brasil, do Senado. Desse total, metade foi destinada às emendas de relator. A previsão para este ano é semelhante: 46% dos R$ 36 bilhões autorizados devem ficar com esse tipo de emenda. Políticos do Centrão têm sido privilegiados com os recursos, como mostrou O GLOBO.
Cientista política e pesquisadora visitante no SNF Instituto Agora, na Universidade Johns Hopkins (EUA), Beatriz Rey explica que o governo conseguiu organizar uma base de apoio, que não existia nos primeiros anos, com a criação do orçamento secreto. Na prática, essa via de negociação enfraqueceu os líderes partidários, que perderam para Arthur Lira o poder de direcionar as emendas:
“O Centrão está em uma posição muito confortável, já que é um mecanismo pouco transparente, que dá muita flexibilidade para os deputados atenderem suas demandas, de maneira legal ou não. É claro que em um mundo ideal esses partidos gostariam de ter acesso também a cargos, mas essa negociação acontecia via partido, e o presidente da República ficou sem partido durante um bom tempo. É mais conveniente também para os deputados lidar diretamente com o presidente da Câmara, em vez de negociar com um presidente sem legenda.”
Professor da Fundação Dom Cabral e autor do livro “Dinheiro, eleições e poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”, Bruno Carazza também chama a atenção para o protagonismo de Lira na negociação com as legendas e aponta que Bolsonaro, apesar da aproximação com o Centrão por meio de outras vias, deve usar a pouca participação dos partidos em cargos como ativo eleitoral, em discurso semelhante ao de 2018.
“O Centrão estabelece a pauta e toca o governo. Quando Bolsonaro veta algum ponto, porque tem impacto fiscal ou vai contra a política econômica, ele veta já sinalizando para o Congresso derrubar o veto. As principais moedas de troca, como ele não não abriu o governo para o embarque completo dessas siglas nos cargos, são o orçamento secreto e a condução da própria agenda do governo no Congresso.”
*Informações IG