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O homem único na hora única e os limites territoriais de Ladário. A segunda emancipação (Parte I)

 

A memória ladarense tem dois momentos a serem cantados em prosa e verso, e uma história ainda a ser contada. A História não contada, falta transcender a memória e ser escrita nos Anais. Memória e História são distintas[1]. A primeira foi a Fundação do Arsenal de Marinha de Ladário com a transferência do Arsenal de Marinha de Mato Grosso[2], sediado em Cuiabá, para Ladário em 1873 e a luta entre as autoridades navais e políticas. Os políticos da época, dentre eles os Presidentes da Província de Mato Grosso, Francisco José Cardoso Junior e José de Miranda da Silva Reis, faziam pressão para a construção do arsenal em Corumbá, na Baía dos Tamengos ou na Ponta do Castilho. Já as autoridades navais, dentre elas o Ministro da Marinha, Joaquim Delfino Ribeiro da Luz e o disciplinado Capitão de Fragata Manoel Ricardo da Cunha Couto, responsável pela façanha, transferir o arsenal de Cuiabá e os materiais da Ilha do Cerrito. Corumbá ficou sem o Arsenal da Marinha e na emancipação Ladário ficou sem as Minas do Urucum e a Cimento Itaú. A segunda memória é sem dúvida a emancipação de Ladário em relação a Corumbá pela Lei 155 de 11 de dezembro de 1953. A História ainda a ser contada, é o retorno das terras de Ladário aos ladarenses, tendo como balizas naturais o Córrego do Gonçalo. Talvez tenhamos que escrever nos boletins de nossas crianças, o Córrego do Gonçalo é nosso, retomá-lo é um dever, numa alusão ao descrito na libreta escolar da criança boliviana. Nesta libreta escolar dos alunos bolivianos, encontra-se latente o desejo do povo boliviano em retomar o Canal de Beagle, perdido para o Chile na Guerra do Pacífico entre os anos de 1879 e 1883, envolvendo Bolívia, Chile e Peru. Não será fácil, retomar nossos limites, talvez precise mais que um acordo mútuo e seja necessário perder a ternura.

A primeira emancipação de Ladário ocorreu com seu desmembramento de Corumbá, a 17 de março de 1954, fruto da Lei de número 155 aprovada pela Assembléia Legislativa de Mato Grosso em 11 de dezembro de 1953. A segunda ainda por vir, o reconhecimento dos reais limites territoriais de Ladário, cujo divisor é o Córrego do Gonçalo onde atualmente se encontra instalado o Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Mato Grosso do Sul. Esta segunda emancipação vai representar mais recursos oriundos de impostos cobrados pela atividade mineradora das Minas do Urucum e pela Companhia de Cimento Itaú, ambas situadas no Município de Corumbá, mas historicamente e por direito pertencentes ao povo ladarense. Retomar nossos limites territoriais, certamente envolve ousadia de um homem único na hora única, portanto previsto na obrigação de fazer.

A emblemática delimitação do Município de Ladário, cercado por Corumbá em todos os lados, foi tema de recente entrevista do Prefeito de Ladário Carlos Anibal Ruso Pedrozo ao Capital do Pantanal. Sobre o assunto o prócer “garantiu que na sua gestão isso será solucionado porque já tem em mãos documentos que estabelecem os valores legais, vamos sentar e fazer um acordo mútuo com Corumbá e, já temos uma reunião com uma comissão formada pela sociedade civil, que está me cobrando posicionamento. Pedi, gentilmente, os documentos ao diretor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que nos enviou e vou chamar esta comissão e, em parceria, sem ‘perder a ternura’, sem perder a amizade avançar no progresso do município”. As palavras do prefeito realimentaram um antigo sonho e reacenderam uma esperança: revisão dos limites territoriais de Ladário. Acreditando na força da pena maior que a espada, o prefeito ao comentar que pretende resolver este problema o fará em parceria sem perder a ternura, sem perder a amizade, também acredita na pena e na palavra. Homens como Rui Barbosa também acreditaram na pena, mas foi derrotada pela caserna na chamada Campanha Civilista.

Como é do conhecimento de todos, os limites territoriais do Brasil foram forjados, primeiramente na audácia bandeirante e depois confirmados pela diplomacia de Alexandre de Gusmão na assinatura do Tratado de Madri em 1750. O Tratado de Madri estabeleceu nossa configuração atual, negociado pelo habilidoso e competente Diplomata nascido em Santos (SP) Alexandre de Gusmão (o homem único na hora única). A memorável obra sobre o Tratado de Madri e Alexandre de Gusmão foi escrita pelo historiador português Jaime Cortesão como um ambicioso plano de desvelar todas as fases do Tratado. Cortesão, lecionou no Ministério das Relações Exteriores uma série de cursos sobre a formação territorial brasileira, a convite do Ministro Oswaldo Aranha para auxiliar nos estudos sobre o Atlas Histórico do Brasil. Enquanto esteve exilado no Brasil (1940-1947) durante o Governo de Marcello Caetano, por conta da Ditadura Nacional Portuguesa  e as perseguições que sofrera em Portugal após o golpe e implantação da Ditadura Salazarista. Cortesão, escreveu vastíssima obra sobre o luso-brasileiro Alexandre de Gusmão e o mameluco paulista Antonio Raposo Tavares “Depois da ditadura salazarista o ter obrigado a abandonar Portugal com o carimbo de “banido” no passaporte (20 de Outubro de 1940), Jaime Cortesão encontra refúgio no Rio de Janeiro e âncoras também seguras em São Paulo. À mesquinha e imperdoável injustiça que lhe era feita, a grandeza do historiador responde com estudo afincado e uma série de notáveis trabalhos individuais e colectivos sobre a história do Brasil, evoluindo do momento do descobrimento à história diplomática do Brasil império, passando pela história dos bandeirantes e pelos assuntos da cartografia antiga a que aludimos”[3]. A obra de Cortesão é uma referência para o entendimento dos limites territoriais do Brasil. O que o trabalho de Cortesão tem a ver com os limites territoriais da Cidade de Ladário? Pergunta-se a esta altura o atento leitor ladarense. Esta pergunta pretende-se responder na Parte II deste artigo. (continua)


[1] LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 1994.

[2] O Arsenal de Marinha de Mato Grosso foi fundado em 1825 pelo Presidente da Província de Mato Grosso José Saturnino da Costa Pereira, em obediência expressa a ordens emanadas pelo Imperador D. Pedro I.

[3] OLIVEIRA, Francisco Roque de. JAIME CORTESÃO NO ITAMARATY: OS CURSOS DE HISTÓRIA DA CARTOGRAFIA E DA FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL DE 1944-1950. Scripta Nova REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. XVIII, núm. 463, 1 de enero de 2014.

 

Por: Saulo Alvaro de Mello
Mestre em História/UFGD