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MS 40 anos: Construção da memória Mato-grossense Parte II

 

Para se entender pelo menos em parte, as tentativas de construções identitárias de Mato Grosso do Sul, é salutar também discutir pelo menos em parte, as construções identitárias de Mato Grosso, cuja capital, Cuiabá, foi fundada em 8 de abril de 1719 as margens do Rio Coxipó com a descoberta de veios auríferos naquela região.

A historiografia Mato-grossenses e a construção identitária do Mato Grosso teve expoentes como Virgilio Corrêa, Dom Aquino Correa, Estevão de Mendonça e instituições como o Instituto de Mato Grosso[1] e o Centro Mato-grossense de Letras. No bicentenário da fundação de Cuiabá em 1919, proliferaram  os símbolos distintivos de Mato Grosso, como o hino, o brasão, a carta geográfica de Mato Grosso, as datas, os heróis e grandes personagens redescobertos ou alçados a essa condição -, que, a partir de então, passaram a compor a memória histórica e as tradições locais (GALETTI, 2000, p. 273).

A historiadora Vilma Eliza Trindade ao estudar com profundidade a vida e a obra de Virgílio Correa Filho, aponta que o mesmo foi o mais importante intelectual mato-grossense -grossense tendo influência nacional e internacional. Suas obras foram elaboradas no sentido de idealizar uma identidade para Mato Grosso a partir de efemérides paulistas. Para Trindade referindo-se a Correa Filho, “não há e nem haverá nenhum trabalho sobre Mato Grosso sem citá-lo”, cuja memória história foram “construídas com o objetivo de evidenciar a importância de Mato Grosso para a formação e consolidação da unidade nacional (TRINDADE, 2001, p. 11;14).

A memória de consenso em torno da identidade Mato-grossense, teve em Virgílio Correa Filho seu principal idealizador e no bandeirante paulista seu mais notório personagem. Para Silva (2006) o pensamento predominante no IHGMT elaborou a memória de consenso não se limitando ao épico e ao ufanismo, mas a identidade desejada das gentes de Mato Grosso, ligadas a aristocracia europeia demonstrando que o povoamento da região só foi graças a lideranças nobiliárquicas paulista.

Para Pierre Nora, (1993) a memória é vida, evolui por ser carregada por grupos vivos, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações, vulnerável a todos os usos e manipulações. Já autores como Halbwachs (S.d) anotam que o protagonismo da história é a memória coletiva que tece e retece o que o tempo cancela, funda, refunda e reinventa continuamente um passado. Neste sentido a memória tem importância essencial na formação da identidade, conforme aponta Le Goff “ A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, (LE GOFF, 2003, p. 469).

 Memória de consenso em torno da identidade Mato-grossense

A memória de consenso Mato-grossense foi forjada em torno do bandeirante paulista, tendo como um de seus proponentes Virgílio Corre Filho, a começar pela exaltação a Pascoal Moreira Cabral, bandeirante paulista descobridor dos veios auríferos de Cuiabá, a quem foi reservado o destino o privilégio de iniciar a nova era da região, de que surgiu Mato Grosso. Para Corrêa Filho (1969) era mister para o bandeirante desenvolver resistência contra os obstáculos naturais que se opunham à ocupação humana. Para ele o bandeirante paulista era um homem chão, sem letras, pouco polido, de agudo entendimento, sincero, sem maldade alguma, de extremada caridade com os próximos. Parece-nos um tanto exagerado a afirmação de extrema caridade, pois estes bandeirantes foram responsáveis pelo extermínio a golpes de fação de grupos inteiros de nações indígenas.

Em que pese o ufanismo e a intrepidez do bandeirante na visão de Correa Filho, desenvolver resistência, significava também empreender a chamada guerra justa contra os naturais. O quase extermínio dos nativos pelo bandeirante, elevado à categoria de herói, não apaga que sua incontestável chefia serviu para estabelecer a paz dos cemitérios.

Um destes assassinos de indígenas, Antônio Raposo Tavares, foi alçado a qualidade de herói pela elite cuiabana sob a lente e a pena de Virgílio Correa filho. A leitura unilateral de Virgílio Correa Filho sobre os bandeirantes é uma visão torpe sobre o processo de universalidade da história. Para Correa Filho os mato-grossenses, e sobretudo os cuiabanos, são legítimos representantes dos paulistas, gerando uma nova estirpe dos CUIABANOS, que invadiu a história” (CORREA FILHO (B), Vol I, 1925, p. 6)

Ao afirmar que o cuiabano invadiu a história, obreiro máximo do desenvolvimento de Mato Grosso, a diversidade, claramente estampada nas gentes de Mato Grosso povoado por índios, negros e brancos é reprimida na escrita eugênica e eurocêntrica de Correa Filho. Para Meira (2016) a diversidade está estampada e ao mesmo tempo reprimida, sendo a ideia do outro desqualificada, “Não é difícil observarmos que a nossa cultura não discute mais ideias diferentes do padrão posto pelo ocidental, mas as refuta e desqualifica com moralidade fundamentalista “ (MEIRA, 2016, p. 63).

Nesta homogeneização pretendida, não há dúvida para Correa Filho, que o cuiabano foi o grande responsável pela pujança e desenvolvimento de Mato Grosso como se todos os Mato-grossenses fossem cuiabanos.

Representações sobre Mato Grosso e as comemorações do bicentenário de Cuiabá

Na busca dos elementos constitutivos da identidade sul mato-grossense, não há como desprezar as tentativas do Mato Grosso neste processo de pertencimento e construções identitárias, sobretudo, calcadas em civilizar o Mato-grossense, num conjunto de representações, calcadas na edição do Albúm Grafico de Mato Grosso em 1914 e as comemorações do Bicentenário da fundação de Cidade de Cuiabá

Em nome desta construção identitária e afastar o estigma da barbárie de uma região inculta, o Governo do Estado do Mato Grosso em 1914 editou em Hamburgo na Alemanha o Albúm Gráfico de Mato Grosso a verdadeira certidão de identidade dos mato-grossenses. Para Zorzato, a análise do Álbum Gráfico revela os parâmetros de construção de uma identidade coletiva, representativa de toda sociedade mato-grossense. Mesmo tendo sido elaborado por uma elite (ZORZATO, 1998, p. 35).

O prefácio do Álbum Gráfico, apresentava um Mato Grosso moderno, pronto a receber pessoas e investimentos, habitado por gente sóbria e inteligente, caudalosos rios, extensos campos de cria, rico em minerais e fauna opulenta. Para Galetti (2000) a edição do álbum era primorosa, recheada de fotos das nossas belíssimas paisagens, uma região onde o homem já pôs a mão, com ferrovias e linhas telegráficas, modernas usinas de açúcar, casas comerciais e instituições de ensino. O Álbum Gráfico procurava assim desmistificar as representações negativas sobre Mato Grosso e o estigma da barbárie.

A elite Mato-grossense representada nas páginas do Álbum Gráfico é a mesma que procurava forjar uma identidade Mato-grossense, afastando o imaginário de um estado inculto, selvagem, ignorante, buscando suas origens no bandeirante paulista e no europeu, com destaque para o paulista, um “[…] povo audaz e forte, que rompendo os sertões bravios, iniciou a colonização de Mato Grosso” (CORRÊA FILHO, 1922, p. 105).

Não há como negar que estas representações tiveram grande repercussão e contribuíram, pelo menos em parte, para justificar a construção da identidade mato-grossense.

Em relação as Comemorações do Bicentenário da Fundação da Cidade de Cuiabá, a elite Mato-grossense, leia-se Cuiabana, aproveitou estas comemorações para refazer a identidade estigmatizada, dessa procurou elaborar seus símbolos e distintivos da identidade regional,

Para Galetti (2000) as festas em comemoração ao bicentenário se revestiam de importantes simbolismos no sentido de acalmar os ânimos face aos recentes embates entre os principais coronéis, além de adotam símbolos representativos do patriotismo mato-grossense, “ […] como o hino, o brasão e a carta geográfica de Mato Grosso, as datas, os heróis e grandes personagens redescobertos ou alçados a essa condição -, que, a partir de então, passaram a compor a memória histórica e as tradições locais (GALETTI, 2000, p. 273)”.

Nesta reelaboração houve a conjunção de esforços na construção de uma identidade e desconstrução de outra. Na construção da identidade realça o cuiabano herdeiro da tradição do mito bandeirante. Na desconstrução há um silêncio sobre o indígena e o negro. Ao traçar um paralelo do mato-grossense com o entre o bandeirante paulista, a elite cuiabana silenciou-se sobre o indígena e o negro, reforçando assim o caráter eugênico e elitista do cuiabano.

Para os Mato-grossenses sua identidade foi herdada do bandeirante paulista conforme já demonstrado, mas para os Sul Mato-grossenses, órfãos após a divisão do estado, coube construir sua identidade. A partir de onde, de quais referenciais e efemérides?

No próximo artigo, pretende-se discutir as construções Identitárias do Mato Grosso do Sul, com destaque para as fronteiras guaranis.

 

Por: Saulo Alvaro de Mello – Mestre em História/UFGD


[1] O Instituto Histórico de Mato Grosso, fundado em 1919 era destinado a preservar a memória e as tradições locais e o Centro Mato-grossense de Letras voltado ao incentivo à produção literária de cunho regional (GALETTI, 2000).